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Fluoretação da água: equívocos sobre estudos da Universidade Harvard

Paulo Capel Narvai 

Em 2015, mas principalmente no primeiro semestre de 2016, começaram a circular, no Brasil, notícias sobre pesquisas que teriam sido realizadas “na Universidade Harvard, provando que a fluoretação da água de abastecimento público deve ser interrompida, no Brasil e em todo o mundo”. Alguns, mais incisivos, acrescentavam: “Interrompida imediatamente, pois finalmente está provado que isso não adianta nada e prejudica a saúde”.
 
Naquele período, recebi de amigos, colegas e estudantes, mensagens em que me perguntavam se eu conhecia esses estudos e o que pensava deles. Li o artigo que motivou os questionamentos, respondi a todos e não dei maior importância ao fato. Estava seguro de que, qualquer leitor, cirurgião-dentista ou não, que dispusesse de conhecimentos elementares a respeito da fluoretação da água, não teria dúvidas sobre o que concluir da leitura do artigo que teve origem em pesquisa desenvolvida na Harvard University, mais exatamente em sua Faculdade de Saúde Pública. Os estudos simplesmente não se referiam à fluoretação da água, tal como a entendemos na Odontologia e na Saúde Pública. A alguns desses interlocutores cheguei inclusive a recomendar um vídeo contendo trechos de uma palestra que fiz em 10/12/2015, no 5º Seminário Estadual Água e Saúde, realizado sob responsabilidade do CVS – Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Nesse vídeo, disponível no YouTube, conto em linhas gerais a história que levou ao início da fluoretação das águas na cidade de São Paulo, em 1985, e outros municípios da região metropolitana, o absoluto sucesso epidemiológico dessa iniciativa, e ainda explico por que motivos os argumentos contrários à medida, no passado e no presente, não encontram respaldo na literatura científica sobre o tema. Interessados podem ter acesso a esse vídeo em: https://www.youtube.com/watch?v=YJfOoBeAHdY.
 
Porém, para minha surpresa, constatei que nos últimos meses difundiu-se intensamente, sobretudo em redes sociais, a história de que “a pesquisa da Universidade Harvard prova que a fluoretação da água deve ser interrompida imediatamente”. Os argumentos vinham agora com um complemento segundo o qual os pesquisadores brasileiros “não estão atualizados cientificamente” e seguem baseando “suas crenças” em “conhecimentos ultrapassados”.
 
Passei a considerar, desde então, a necessidade de publicar algo, esclarecendo o que penso desse assunto. Cogitava disso quando recebi, como Coordenador Geral do CECOL/USP, o Centro Colaborador do Ministério da Saúde em Vigilância da Saúde Bucal, da USP, um pedido do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CRO-SP), para que o centro colaborador elaborasse um parecer técnico-científico sobre o assunto, pois colegas cirurgiões-dentistas estavam manifestando ao CRO-SP suas dúvidas sobre “as pesquisas desenvolvidas na Universidade Harvard”. No âmbito do CECOL/USP constituímos um grupo de trabalho para produzir o referido parecer, composto por pesquisadores vinculados ao centro colaborador. O produto desse esforço foi encaminhado à autarquia paulista em 21/7/2016. Leitores interessados em mais detalhes sobre o assunto podem consultar o CRO-SP.
 
Mesmo com o parecer do CECOL/USP disponível no CRO-SP, que o solicitou, considerei oportuno e necessário seguir divulgando as conclusões da análise feita na USP, para esclarecer sobre o assunto o público em geral, dado o interesse despertado no Brasil.
 
O artigo que deu origem aos questionamentos veiculados no Brasil é assinado por dois pesquisadores vinculados à Universidade Harvard, Philippe Grandjean e Philip Landrigan, e tem o título “Neurobehavioural effects of developmental toxicity”. Não se refere, portanto, à fluoretação da água, nem menciona o flúor como “neurotoxina”, conforme foi divulgado no Brasil. O trabalho, publicado em março de 2014, ocupa-se de “deficiências do desenvolvimento neurológico” e identifica 214 produtos químicos industriais que poderiam estar implicados com o aparecimento dessas deficiências. Ainda que o fluoreto não seja propriamente um produto químico industrial, foi incluído entre esses 214 elementos ou compostos químicos. Grandjean e Landrigan não dão maiores detalhes sobre por que o fizeram e, em seu artigo, apenas citam um estudo de revisão, do tipo meta-análise, realizado na China, que incluiu 27 pesquisas em que foram analisadas águas que, naturalmente, continham altos teores de fluoretos. Tais estudos analisaram a possível associação desses altos teores de fluoretos nas águas com prejuízos ao desenvolvimento cognitivo de crianças. Contudo, no artigo de 47 parágrafos dos pesquisadores da Universidade Harvard, o elemento flúor é mencionado e analisado em apenas um, ressalvando-se que foi considerada apenas a exposição a águas naturalmente fluoretadas com altos teores do elemento (superiores a 2,5 mg F/L). É preciso assinalar que efeitos adversos de fluoretos, quando há exposição a teores altos, são conhecidos há mais de 70 anos. Não há, nesse aspecto, nenhuma novidade na pesquisa feita em Harvard.
 
Os autores do artigo são explícitos ao mencionar que a análise que fizeram não se refere aos efeitos da exposição de humanos a águas de abastecimento público em concentrações mais baixas (0,7-1,2 ppmF ou mgF/L). Ou seja, não se referem ao que conhecemos como “fluoretação da água”. Tais efeitos, cabe enfatizar, são bem conhecidos e benéficos. Águas com baixos teores de fluoretos são as que se busca obter com a “fluoretação da água”, tecnologia de Saúde Pública amplamente utilizada no Brasil, nos Estados Unidos, na Austrália, Canadá e outros países.
Os estudos realizados na Universidade Harvard foram muito mal interpretados no Brasil. Não há conhecimento científico novo que prove que a fluoretação da água de abastecimento público deve ser interrompida, muito menos “imediatamente”, nem aqui nem em outros países. Ao contrário, em nosso País, dadas as nossas conhecidas desigualdades e dificuldades para prover acesso universal a cuidados odontológicos, a fluoretação não apenas deve ser mantida, mas ampliada com urgência e o mais amplamente possível, uma vez que não são questionadas sua eficácia preventiva, sua eficiência econômica e sua segurança para a saúde humana.
 
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Artigo originalmente publicado no Jornal do Site Odonto em 22/7/2016. Disponível em: http://www.jornaldosite.com.br/materias/artigos&cronicas/anteriores/paulo%20capel/artcapel225.htm